terça-feira, 10 de maio de 2011

TERRENOS DE MARINHA

Barraca encostada na falésia sobre a Linha do Jundu

Olá amiggos e coleggas,
Estou de volta para tratar de um tema que é notícia nas manchetes desta semana: a ocupação da orla marítima.
A mídia dá conta de que as barracas na praia de Canoa Quebrada foram reabertas por conta de um decisão da Desembargadora Sérgia Miranda, do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Clique nos links abaixo e veja matérias de O POVO e DIÁRIO DO NORDESTE.

O POVO:

 http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2010/11/10/noticiafortaleza,2062608/liminar-cai-e-barracas-de-canoa-quebrada-voltam-a-funcionar.shtml


DIÁRIO DO NORDESTE:

http://www.verdesmares.com.br/v3/canais/noticias.asp?codigo=304995&modulo=178

Voltemos um pouco para relembrar os fatos.
Como indicado na chamada ao lado, a Juíza Maria do Socorro Montezuma Bulcão, da 1ª Vara de Aracati (CE), decidiu interditar 18 barracas que funcionam nas encostas das falésias, atendendo ao pedido de liminar do Ministério Público, contido em uma Ação Civil Pública. Os promotores arguiram que tanto os turistas como os colaboradores das barracas estavam (estão) sob iminente risco de vida, como as três vítimas de um desabamento que ocorreu em fevereiro de 2009.
Não trouxe a matéria para examinar o mérito (qual decisão é a certa). Também não tenho a pretensão de dizer se a Juíza ou a Desembargadora têm competência jurisdicional para decidir sobre a espécie.
Aqui, minha intenção é questionar se a área ocupada pelas barracas está (ou não) sob a jurisdição da União, posto que, aparentemente, estão situadas em áreas de praia denominadas de Terrenos de Marinha.
Primeiro, precisamos ver o que é Terreno de Marinha. Vamos lá.
Durante a colonização, a Coroa portuguesa concedeu as terras brasileiras para a exploração por empresários (nobres) lusos mediante o sistema - que já havia funcionado em outras bandas - denominado de Capitanias Hereditárias. Calma, não vou chateá-los com essas histórias de colégio. Quero apenas mostrar que o solo brasileiro foi inicialmente ocupado por particulares que mandavam e desmandavam quase sem limites. Também não vou discutir o direito de propriedade original. O fato é que os europeus chegaram aqui e invadiram as terras dos povos tupis que ocupavam quase todo o litoral de Pindorama.
A Coroa, entretanto, reservou uma faixa de terra, ao longo de toda a extensão da orla marítima, para garantir a proteção das terras "achadas" da invasão de outros interessados, como tentaram os franceses e os holandeses.
A Ordem Régia de 21 de outubro de 1710 dispunha:

"que as sesmarias nunca deveriam compreender a marinha que sempre deve estar desimpedida para qualquer incidente do meu serviço, e de defensa da terra."

Observe que "meu serviço" é o serviço do Rei. Lembre-se de que os reis europeus consideravam-se o próprio Estado.
El Rei de Portugal garantia, assim, que todas as praias estivessem desimpedidas para a defesa dos territórios portugueses em todos os continentes em que seus navegadores puseram os pés. De Macau, na China, ao Brasil, passando pela Índia e pela África. Sem falar que existem registros de que também estiveram na América do Norte ainda no século XV, bem como nas ilhas que ficam nas imediações da Austrália e - é muito provável - no próprio continente austral.
Em 18 de novembro de 1811, D. João VI assina, no Rio de Janeiro, a Ordem Régia criando o instituto dos terrenos de marinha e seus acrescidos.

"tudo o que toca a água do mar e acresce sobre ela é da Coroa, na forma da Ordenação do Reino"
"da linha d'água para dentro sempre são reservadas 15 braças craveiras pela borda do mar para serviço público"

Só para constar: "braça" é uma medida da época e ainda hoje usada no sertão; "craveira" quer dizer que a medida é feita com um padrão imperial (tipo aquele metro de madeira usado para medir tecidos nos armazéns, só que com 2,20 metros de comprimento, aproximadamente, a medida dos braços abertos, da ponta de uma mão à outra).

Em excelente artigo relacionado com a Tese de Doutorado do Prof. Dr. Obéde Pereira de Lima (FURG) e do M. Engº Roberval Felipe Pereira de Lima (UFSC), podemos ler uma referência inequívoca sobre as 15 braças da ordenação acima:

Medida antiga de comprimento: cada braça tem 10 palmos; cada palmo tem 0,22 metro; logo, 1 braça tem 2,20 metros; e 15 braças têm 33 metros (extensão suficiente para que um contingente militar com o efetivo de uma companhia de nove (9) soldados, deslocar-se livremente na faixa litorânea estabelecida).

Depois, em 1832, o Ministério da Fazenda baixou uma Instrução que trazia no seu artigo 4º:

"são terrenos de marinha todos os que, banhados pelas águas do mar, vão até a distância de quinze braças para a parte da terra, contados desde o ponto a que chega o preamar médio de 1831"

Por fim, o Decreto-Lei nº 9.760/46 ratificou a disposição imperial:

Art. 2o. São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 metros (trinta e três ) metros , medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar médio:"

E, para fastar qualquer disputa duvidosa sobre a jursisdição de tais áreas, o constituinte incluiu os terrenos de marinha como bens da União no inciso VII do artigo 20 da Constituição de 1988. Não cabe mais discutir de quem é a jurisdição.
Falta ainda definir o que é o preamar médio. Para tanto, é bom referir o que nos indica Humberto Haydt de Souza Mello, na Revista de Informação Legislativa do Senado. Primeiro, ele estabelece o que é preamar:

"preamar é o ponto mais alto a que sobe a maré. É o mesmo que maré cheia."

Depois, indica o que é o preamar médio:

"corresponde à posição média de preamares observadas durante uma ou várias lunações".

Trocando em miúdos, é a média das marés cheias, ao longo do ano. No nosso caso, a média do ano de 1831.
Daí, para demarcar os terrenos de marinha, é preciso, antes, determinar a Linha do Preamar Médio ao longo de toda a orla marítima brasileira e seus acrescidos, incluindo aí, a foz dos rios e os lagos abertos ao mar (lagamares). Ou seja, qualquer área que sofra a influência das marés.
Cabe ainda, observar que não se deve confundir os terrenos de marinha com as praias.
Praia é "a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subsequente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural (linha do jundu), ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema." (Lei nº 7.661/88 - Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro).
Tendo-se em vista que as praias têm largura variável, os terrenos de marinha tanto podem avançar  além da faixa de praia, passando da linha da vegetação natural, como a praia pode ser mais larga e se estender além do terreno de marinha. É o que podemos ver bem na foto abaixo.


Foto do Google da Praia da Caponga (CE)


Na foto acima, que eu tirei do Google Earth, você pode ver, em cima e à esquerda em verde escuro, um trecho de praia com a vegetação tipica do ecossistema do nosso litoral (Jundu). Olhando atentamente ao longo do mar, podemos observar as diversas marcas da água na areia. São os limites do preamar (maré alta). Fazendo uma média das diversas linhas ao longo do ano, obtemos a Linha do Preamar Médio, LPM. A partir de tal linha, medindo-se 33 metros praia acima, temos então a faixa que se denomina terreno de marinha.
Não é preciso medir para ver que a casa sobre a areia úmida (mais escura) foi construída em terreno de marinha. O proprietário é dono da casa, mas jamais será dono da área, a não ser, é claro, que o mar recue. O que já aconteceu em outras praias do Ceará. Ele tem, portanto, a chamada posse útil, mediante pagamento de foro anual à União. É como se fosse um arrendamento de preço módico e fixo.

Agora, vamos ver as barracas da Praia de Cano quebrada. Olhe as fotos.


Foto das barracas tirada de cima das falésias (Google Imagens)


Foto do Google Earth das mesmas barracas. Vê-se as falésias, logo abaixo

A faixa escura na foto que tirei do Google Earth acima é o limite do premar (do dia da imagem). Não tem como situar com precisão a Linha do Preamar Médio (a Capitania dos Portos deve ter). Mas dá para estimar, usando-se como referência os quebra-sóis amarelos (à frente das barracas do meio). Admitindo-se que cada um tem cerca de 1,5 metro de diâmetro, imagine cerca de 22 deles em linha até um ponto médio (+ ou -) da maré alta.
A conclusão fica por sua conta.

Até mais.


   











Um comentário:

  1. Prof. Alexandre,
    De acordo com sua explanação e legislação vigente, haverá (ou poderá haver) uma área que seja praia e terreno de marinha ao mesmo tempo, uma vez que praia tem sua área variável, ao gosto das marés, e terreno de marinha, por ter um ponto fixo (ou a ser fixado pela SPU: preamar médio de 1.831!!!!!), sempre será o mesmo (e seus acrescidos claro)? É isso?

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